Estava eu muito bem a nadar numa deliciosa piscina, quando me deu uma vontade irreprimível de tentar saber mais sobre a palavra «água». Porquê? Sei lá: deve ser um problema meu. Não importa: vamos de viagem pelos nomes da água — e, pelo caminho, ficaremos a saber donde veio a nossa «ilha», a nossa «onda» — e que estranhas voltas deu o nome da água na Grécia. Há também umas bebidas alcoólicas lá pelo meio. No fundo, é uma boa viagem para uma tarde de Verão — embora, aviso já, começamos no calor de Portugal, mas terminamos o percurso nas águas gélidas do Norte do Canadá…
Da nossa «auga» à trituradora francesa
A água é essencial ao ser humano — e vemos isto em tanta coisa: desde o estranho prazer de mergulhar para dentro duma piscina ao facto conhecido de que as casas com vista para o mar ou para o rio valem mais só por isso. O ser humano precisa de água — nem que seja ao espreitar pela janela.
A nossa «água» vem do velho latim, onde tinha a forma «aqua». Do /k/ do latim, passámos ao /g/. Mas, mais do que isso, o nosso /g/ começou a não interromper por completo o ar e tornou-se numa consoante fricatizada. Se reparar bem, o /g/ da «água» sai continuamente da nossa boca — a consoante deixou de fechar o fluxo do ar, como acontece com o /k/. Usando o Alfabeto Fonético Internacional, o /g/ da nossa água é realizado como [ɤ]. Desse som corrente, sem interrupções, talvez venha a impressão enganadora que eu tenho de que a palavra água é muito… aquática! «Enganadora», digo — que isto de tentar encontrar a realidade na própria forma das palavras é uma ilusão. Até o ladrar dos cães é diferente de língua para língua…
Se virmos bem, nós pouco estragámos a «aqua» latina. É certo que alguns portugueses fazem uma troca ali dentro e transformam a «água» em «auga». Nada a assinalar: as palavras dão estas belas piruetas nas suas navegações pelos séculos fora. Aliás, na Galiza, a palavra também tem estas duas formas («água» e «auga»), mas, curiosamente, a forma adoptada pela norma oficial do galego é aquela que relegámos para o purgatório do português fora da norma: «auga» — sim, a forma popular da palavra em partes do nosso país, quando salta a fronteira, torna-se na palavra oficial.
Não acusemos, no entanto, aqueles que dizem «auga» de estragarem a bela palavra latina. Se eles estragaram, o que dizer dos catalães, que lá enfiaram uma letrita («aigua»)? O que dizer dos romenos, que a transformaram em «apă»? E, se podemos deixar descansada a palavra nas mãos dos italianos (pelo menos os que falam o toscano a que chamamos italiano), o que dizer dos franceses?…
Ah, os franceses! Não olhemos para as palavras escritas, que essas enganam bem, engalanadas como estão daquela ortografia pirotécnica. Oiçamos com atenção os sons… E aí temos uma língua que passou o latim pela trituradora. Pensemos na conjugação verbal, que na escrita ainda distingue as várias pessoas, mas na fala vai a meio caminho de deixar os verbos tão simples como os ingleses (quelle horreur!). Pensemos no velho mês de Agosto, que os franceses, pimpões, escrevem «août», mas lêem apenas «u». E pensemos na pobre «aqua» latina, que acabou transformada em «eau», três vogais que se lêem como um «ô», que nem lá põe os pés quando escrevemos a palavra.
(Já agora, uma nota: quando falei dos verbos franceses a caminho de ficarem tão simples como os ingleses, estava a pensar no presente do indicativo dos verbos regulares. A conjugação francesa ainda é bastante mais complexa do que a inglesa — ainda!…)
A fonte das águas e as ilhas inglesas
Bem, continuemos a viagem, agora pelas águas turvas do tempo. Se recuarmos uns milénios, temos a forma proto-itálica reconstruída «*akʷā». A palavra reconstruída é feia: mas valha-nos que ninguém a escreveu no dia-a-dia! Uma ortografia à latina (que seria anacrónica, claro está) dar-nos-ia algo parecido com «aqua».
Se continuarmos a andar para trás no tempo, encontramos a forma indo-europeia «h₂ékʷeh₂» — é, mais uma vez, uma palavra reconstruída (expliquei neste artigo o que isso quer dizer). É difícil ler esta palavra que ninguém usou na escrita, mas temos ali um «ékwe» que lembra um fantasma da nossa própria palavra, mas enterrada cinco mil anos no passado.
Pois bem, fazendo inversão de marcha e começando o nosso regresso ao futuro, vemos que essa forma indo-europeia não acabou só nas palavras latinas para água. Seguiu pelos séculos fora, na boca de outras pessoas, até chegar ao proto-germânico — a língua que deu origem a muitos idiomas ali do norte da Europa.
No proto-germânico, a palavra indo-europeia já se dividira em dois. Primeiro, temos a forma «*ahwō», que, muitos anos depois, veio a dar, por exemplo, no «eddy» inglês — um «turbilhão» ou um «redemoinho».
Depois, temos a forma «*awjō» — aqui a viagem torna-se mais interessante. Esta forma proto-germânica deu, em inglês antigo, «īeġ» — a maneira como as palavras se tornam umas nas outras talvez pareça impossível, mas quem estudou isto sabe que existem regras e formas de reconstruir com alguma segurança o caminho. Pode haver enganos, claro está, como em tudo.
Ora, o inglês antigo juntou «īeġ» a «land» e ficou com «īeġland». O inglês médio já tinha «yland» e o inglês actual tem a nossa conhecida «island». Note-se que o «s» não se lê, o que ajuda a perceber a sucessão real no som que sai das bocas dos falantes. Curiosamente, a palavra «island» não está relacionada com «isle», que é uma palavra inglesa de origem latina — mas o tal «s» mudo aparece em «island» porque alguém achou que as duas palavras, sendo parecidas e tendo um sentido parecido, deviam ter um «s» também parecido… A ortografia inglesa está cheia destas marteladas de quem achava isto ou aquilo: por exemplo, a palavra «debt» nunca teve ali um «b» na oralidade. Mas como a palavra latina tinha um «b», houve um inglês que, num lindo dia, enfiou ali um «b» para atrapalhar a vida dos miúdos ingleses.
E a nossa ilha? Não deixa de ter uma certa parecença com a «island» inglesa — mas é coincidência. A nossa palavra, diga-se, não veio directamente do latim para o galego e português, mas passou, imagine-se, pelo catalão! A «illa» catalã saltou Castela e veio aterrar na nossa «ilha».
Em suma, a mesma palavra indo-europeia acabou como «água» nas bocas latinas e como «island» nas bocas inglesas…
Da «water» inglesa até às ondas do mar de Vigo
Bem, já vimos que a nossa água foi beber a uma origem indo-europeia que também deu origem à «island» inglesa.
Mas então donde veio a britânica «water»? Veio doutra palavra indo-europeia — tanto quanto conseguimos perceber. A palavra reconstruída é *wódr̥. Desta palavra, surgiu a «water» inglesa, a «wasser» alemã e todas as outras formas das línguas germânicas — incluindo a forma do norueguês nynorsk «vatn» e do norueguês bokmål«vann» (a história de como o norueguês tem duas versões oficiais fica para outro dia).
Também as línguas eslavas foram beber a essa fonte e temos a «вода» («voda») russa, a «woda» polaca, a «vòda» serbo-croata, a «voda» checa e por aí fora. Os eslavos, nos nomes da água, são ainda mais aborrecidos do que nós, os latinos. Ah, mas há algumas surpresas. Um diminutivo da «voda» russa deu-nos o vodca — um diminutivo, disse eu. Ou seja, uma aguazinha, pois então. Mais surpresas alcoólicas: a mesma fonte indo-europeia acabou por nos dar, depois de séculos de fermentação na boca dos celtas, o «whiskey» (não me atrevo a usar o aportuguesamento «uísque», que ainda não me sabe bem).
Bem, num só parágrafo, viemos dos Urais até às costas atlânticas da Irlanda. Desçamos um pouco o nosso navio e apontemos às costas galegas e portuguesas, onde as ondas vão desfazer-se em praias ladeadas de pinhais. Pois não é que a palavra «onda», ao que parece, tem a mesma origem que a «vodka» russa? A «*wódr̥» indo-europeia transformou-se numa «unda» latina, que se transformou na «onda» portuguesa.
Estas duas palavras indo-europeias («*h₂ékʷeh₂» e «*wódr») vieram pelos séculos fora e rebentaram nas nossas praias na forma de «água», «onda», «ilha», «whiskey», «vodka» — e muito mais.
Trocas e baldrocas gregas
Apesar de tudo, estas palavrinhas até se portaram bem. Parece que a grande maioria dos nomes da água na nossa Europa tem origem em duas palavrinhas apenas, sem grandes sobressaltos.
Mas há sobressaltos. Por exemplo, na Grécia…
O grego é uma língua indo-europeia — em princípio, teria ido beber ou à «*h₂ékʷeh₂» («água», «island», etc.) ou à «*wódr» («water», «onda», «vodka», etc.). E, de facto, o grego antigo tinha «ὕδωρ» («húdōr»). Esta palavra é, aliás, a origem de várias palavras portuguesas relacionadas com água, como «hidráulico»…
Bem, se perguntarmos a um grego de hoje em dia qual é o nome do líquido transparente que está no mar ou sai das torneiras, o que ele irá dizer é «νερό» («neró»).
O que se passou? Donde apareceu este «neró»? Durante muitos dos séculos que nos separam da Grécia Antiga, os gregos usaram a expressão «νεαρόν ὕδωρ» («nearón húdōr») para denominar a água doce. A palavra «nearón» é uma declinação de «nearós», que significa algo como «jovem». Ou seja, «água doce» seria «água nova» — e com os séculos a expressão foi deixando cair uma das palavras. Qual? Curiosamente, a palavra que caiu nessa expressão foi «húdōr», ou seja, «água».
Avancemos. O termo passou a designar todo o tipo de água, doce ou não — um pouco como se hoje o nome português para o líquido precioso fosse «doce» e tivéssemos a expressão «doce salgado» em vez de «água salgada». Nada que nos fizesse torcer o nariz se tivesse sido esse o caminho percorrido pela água na nossa língua.
Já a velha palavra clássica grega ainda hoje se encontra em textos muito formais, talvez uma reminiscência das guerras linguísticas de que falei no último artigo.
Antes de terminarmos esta viagem temos de saber que há outros para água na nossa Europa: por exemplo, a «ur» basca, a «su» turca, a «ilma» maltesa, a «víz» húngara, relacionada com a «vesi» finlandesa e estónia.
Há um ou outro linguista que tentou recuar no tempo e encontrar uma palavra que unisse as duas formas indo-europeias — ou mesmo que fosse a origem comum das formas indo-europeias e das formas fino-úgricas (húngaro, finlandês, estónio…). Há que saber parar. Mesmo as formas reconstruídas do indo-europeu são suposições, embora muito bem fundamentadas — tudo o resto serão exercícios curiosos, mas muito perigosos. As palavras faladas desaparecem em poucos momentos. A história destes bichos curiosos é, assim, muito difícil de reconstruir. São os restos que nos chegam às praias do presente que nos permitem ir entrevendo as relações entre línguas e imaginar como seriam as palavras mais antigas…
(Deixo uma sugestão de leitura para quem quer saber mais sobre o que é possível saber ou não sobre a origem da linguagem: The Power of Babel, de John McWhorter.)
As palavras dos esquimós
Portanto, parece que os indo-europeus não tinham uma só palavra para água. É difícil saber quantas tinham, mas temos pelo menos as duas fontes das águas europeias de agora — e também «*h₂ep-», a forma que deu origem à água persa e algumas outras.
Não é nada de extraordinário — afinal, os gregos acabaram por ficar com duas palavras para água quase sem querer. No caso dos gregos, uma delas é muito formal, a outra é usada em praticamente todas as situações do dia-a-dia. Talvez os indo-europeus tivessem uma palavra para a água doce, outra para a água salgada e ainda outra para a água em situações formais. Ou uma palavra para a água parada e outra para a água corrente… Ou talvez fossem tudo sinónimos, ponto final.
Não convém imaginar grandes conclusões a partir destes factos. Muito terá sido fruto do acaso. É preciso ter cuidado: há ideias que começam com um pequeno grão factual e acabam num mito linguístico difícil de extirpar.
Dou um exemplo conhecido, bem descrito por Geoffrey K. Pullum neste artigo(o autor já escreveu muito o assunto; há até um livro dele chamado The Great Eskimo Vocabulary Hoax, onde incluiu este outro artigo).
A história começa quando o antropólogo Franz Boas reparou, no início do século XX, que os Inuit canadianos têm uma raiz para a neve que cai do céu (a raiz é «qana-») e outra para a neve no chão (a raiz, nesse caso, é «api-»). Há mais umas quantas palavras relacionadas com «neve», mas a curiosidade é esta: a neve que cai é designada, na língua dos Inuit, por uma palavra muito diferente da neve que já caiu.
Pois, a imaginação popular pegou neste facto e desatou a correr por aí fora até criar a ideia muito repetida de que os esquimós têm centenas de palavras para neve! Ainda hoje lá reaparece esse mito aqui e ali… É um bom exemplo de como gostamos de inventar sem pudor quando falamos da língua.
Cada língua divide o mundo de diferentes maneiras e daqui radica uma das dificuldades de traduzir. Haverá línguas com maior densidade de palavras diferentes para fenómenos parecidos? Imagino que sim. Mas, mesmo que se conclua que os esquimós têm mais palavras para neve do que as nossas línguas mais quentes, não se conclua daí que é impossível traduzir as palavras para neve dessa língua dos esquimós. Teremos de usar mais umas quantas palavras, é certo —isto, claro, se a subtileza for relevante para o texto, o que nem sempre é o caso. No entanto, esta dificuldade da tradução (que não a impossibilita!) aparece-nos em todas as línguas. O inglês também não divide o mundo da mesma maneira que o português…
Será assim tão extraordinário que os esquimós tenham várias palavras (mas dificilmente centenas…) para designar a neve? Nem por isso. Como bem nota Pullum (dando exemplos ingleses), nós também temos uma palavra para água rodeada por terra («lago») e outra para água a correr em direcção ao mar («rio») — isto, claro, entre muitas outras variações. Mais: tal como os esquimós no que toca à neve, também nós temos uma palavra para a água que cai («chuva») e outra para a água que já caiu («água», «poças», «água da chuva» ou «cuidado, que a estrada está escorregadia»).
Aliás, temos não sei quantas palavras para água! Começamos por «neve», mas avançamos por «gelo», «chuva», «lago», «mar», «oceano», «albufeira», «glaciar» — sem parar. Tudo nomes diferentes para água numa forma particular. Aliás, até o plural da palavra tem os seus significados próprios…
Com esforço, ainda chegamos longe nesta lista e podemos depois declarar: «Os Portugueses têm centenas de palavras para “água”!» A frase fica bem, é sonora, deixa-nos com a agradável sensação de ter descoberto algo extraordinário… Mas, claro, as palavras dos esquimós são mais exóticas, não é?
Na verdade, como sabemos, não somos só nós que damos muitos nomes à água. Parece que as outras línguas também se espraiam em pequenos rios linguísticos, palavras e palavrinhas que usamos para dar nomes à água nas suas variadas formas e feitios. Se um linguista marciano aterrasse por cá, contaria as palavras para água nos vários dialectos humanos e chegaria à conclusão de que somos seres obcecados por este líquido.
E não é que teria razão?
(Agora vou dar outro mergulho — que isto de andar a navegar pelas águas da linguagem humana também cansa.)